quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Vinicius de Moraes


The Secret (1876) - William Bouguereau 


 



 

pg. 1
Soneto  de Fidelidade
 
 
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vive-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar  meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão,  fim de quem ama...
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito, enquanto dure.
  

 Soneto da Separação
 
 
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante 
Fez-se de triste o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante.
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais do que de repente. 



Ausência  
 
Eu vou deixar que morra em mim,
O desejo de amar teus olhos que são doces,
Porque nada poderei te dar,
Senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto, a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto,
E em minha voz, a tua voz
Não te quero ter,
Porque em meu ser tudo estaria terminado,
Quero que só surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada,
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei,
Tu irás e encostarás tua face em outra face,
teus dedos enlaçarão outros dedos,
E tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
Porque eu fui o grande íntimo da noite,
Porque eu encostei a minha face na face da noite, e ouvi sua fala amorosa,
Porque os meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço,
E eu trouxe até a mim, a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais do que ninguém, porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, dos céus, das aves, das estrelas,
Serão a tua voz ausente,
A tua voz presente,
A tua voz serenizada. 


Vida e Poesia  
 
A lua projetava o seu perfil azul
Sobre os velhos arabescos das flores calmas
A pequena varanda era como o ninho futuro
E as ramadas escorriam gotas que não havia.
Na rua ignorada anjos brincavam de roda...
- Ninguém sabia, mas nós estávamos ali.
Só os perfumes teciam a renda da tristeza
Porque as corolas eram alegres como frutos
E uma inocente pintura brotava do desenho das cores
Eu me pus a sonhar o poema da hora.
E, talvez ao olhar meu rosto exasperado
Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga
Talvez ao pressentir na carne misteriosa
A germinação estranha do meu indizível apelo
Ouvi bruscamente a claridade do teu riso
Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada.
E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite
Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos
Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo
E se escorrer sobre os teus lábios como um suco
E marulhar entre os teus seios como uma onda
Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias
De que me tivesses possuído antes do amor.
  


O Haver
 
 
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura, essa intimidade perfeita com o silêncio.
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo. Perdoai: eles não têm culpa de ter nascido.
Resta esse antigo respeito pela noite esse falar baixo, essa mão quetateia antes de ter esse medo de ferir tocando essa forte mão de homem cheia de mansidão para com tudo que existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos, essa inércia cada vez maior ante diante do infinito essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível, essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade do tempo, essa lenta decomposição poética em busca de uma só vida, de uma só morte, um só Vinícius.
Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas essa tristeza diante do cotidiano ou essa súbita alegria ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa piedade de sua inútil poesia de sua força inútil.
Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado de pequenos absurdos, essa tola capacidade de rir à toa esse ridículo desejo de ser útil e essa coragem de comprometer-ses em necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza de quem sabe que tudo já foi, como será e virá a ser. E ao mesmo tempo esse desejo de servir essa contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar, de transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é e essa visão amplados acontecimentos e essa impressionando e desnecessária presciência e essa memória anterior de mundos inexistentes e esse heroísmo estático e essa pequenina luz indecifrável a que as
vezes os poetas tomam por esperança.
Resta essa obstinação em não fugir do labirinto na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente e essa coragem indizível diante do grande medo e ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos de refletir-se em olhares sem curiosidade, sem história.
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade de não querer ser príncipe senão de seu reino.
Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável.
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços e esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada ela virá me abrir a porta como uma velha amante sem saber que é a minha mais nova namorada. 


Tomara
 
 
Tomara que você volte depressa que você
não se despeça nunca mais do meu carinho
E volte, se arrependa e pense muito que é melhor
se sofrer junto que viver feliz sozinho
Tomara que a tristeza te convença que a saudade
não compensa e que a ausência não dá pé
Que o verdadeiro amor de quem se ama tece
a mesma antiga trama e não se desfaz
Que a coisa mais bonita desse mundo é viver
cada segundo como nunca mais. 


Pela luz dos olhos teus  
 
 
Quando a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é, meu Deus que frio que me dá
o encontro desse olhar e se a luz do olhos teus
resiste aos olhos meus só pra me provocar
Meu amor juro por Deus me sinto incendiar
 
Meu amor juro por Deus que a luz dos olhos meus
já não pode esperar quero a luz dos olhos meus
na luz do olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus eu acho meu amor e só se pode achar
que a luz dos olhos meus precisa  se casar... 


Tarde
 
 
Na hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas
Meu espírito te sentiu.
Ele te sentiu imensamente triste
Imensamente sem Deus
Na tragédia da carne desfeita.
Ele te quis, hora sem tempo porque tu eras a sua imagem,
sem Deus e sem tempo.
Ele te amou e te plasmou na visão da manhã e do dia
Na visão de todas as horas
Ó hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas. 


Revolta
 
 
Alma que sofres pavorosamente
A dor de seres privilegiada
Abandona teu pranto, sê contente
Antes que o horror da solidão te invada.
Deixa que a vida te possua ardente
Ó alma supremamente desgraçada.
Abandona, águia, a inóspita morada
Vem rastejar no chão como a serpente.
De que te vale  o espaço se te cansa?
Quanto mais sobes mais o espaço avança...
Desce ao chão, águia audaz, que a noite é fria.
Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste
O mundo é bom, o espaço é muito triste...
Talvez tu possas ser feliz um dia.


Ânsia 
 
Na treva que se fez em torno de mim
Eu vi a carne. Eu senti a carne que me afogava o peito
E me trazia à boca o beijo maldito.
Eu gritei. De horror eu gritei que a perdição me possuía a alma.
E ninguém me atendeu.
Eu me debati em ânsias impuras
A treva ficou rubra em torno de mim
E eu caí! As horas longas passaram.
O pavor da morte me possuiu.
No vazio interior ouvi gritos lúgubres
Mas a boca beijada não respondeu aos gritos.
Tudo quedou na prostração.
O movimento da treva cessou ante mim.
A carne fugiu.
Desapareceu devagar, sombria, indistinta,
Mas na boca ficou o beijo morto.
A carne desapareceu na treva
E eu senti que desaparecia na dor
Que eu tinha a dor em mim como tivera a carne
Na violência da posse.
Olhos que olharam a carne
Por que chorais? Chorais talvez a carne que foi
Ou chorais a carne que jamais voltará?
Lábios que beijaram a carne
Por que tremeis
Não os bastou o afago de outros lábios
Tremeis pelo prazer que eles trouxeram
Ou tremeis na balbucio da oração?
Carne que possuiu a carne onde o frio?
Lá fora a noite é quente e o vento é tépido
Gritam luxúria neste vento
Onde o frio?
Pela noite quente eu caminhei...
Caminhei em rumo, para ruído longínquo
Que eu ouvia,  do mar,
Caminhei talvez para a carne
Que vira fugir de mim.
No desespero das árvores paradas busquei consolação
E no silêncio das folhas que caíam senti o ódio
Nos ruídos do mar ouvi o grito de revolta
E de pavor fugi.
Nada mais existe para mim
Só talvez tu, Senhor.
Mas eu sinto em mim o aniquilamento...
Dá-me apenas a aurora,
Senhor já que eu não poderei jamais ver a luz do dia. 


Amor nos três pavimentos  
 
Eu não sei tocar, mas se você pedir
Eu toco violino, fagote, trombone, saxofone.
Eu não sei tocar, mas se você pedir
Dou um beijo na lua, bebo mel himeto
Pra cantar melhor.
Se você pedir eu mato o papa, eu tomo cicuta
Eu faço tudo o que você quiser.
Você querendo, você  me pede, um brinco, um namorado
Que eu te arranjo logo.
Você quer fazer verso?
É tão simples... você assina
Ninguém vai saber.
Se você me pedir eu trabalho dobrado
Só pra te agradar.
Se você quisesse!...
até na morte eu ia descobrir poesia.
Te recitava as Pombas,
tirava modinhas pra te adormecer.
Até um gurizinho, se você deixar
Eu dou pra você... 


A mulher que passa
 
 
Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! como és linda mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos leves são relva boa, fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Como eu te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quanto te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?
Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida?
Para o que sofro não ser desgraça?
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu  quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!
Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura e devassa
Que bóia como a cortiça
E tem raízes como a fumaça. 



Ternura  
 
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem o fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora. 

 Soneto da inspiração
 
 
Não te amo como uma criança, nem
Como um homem e nem como um mendigo
Que o grande mal da vida traz consigo.
Não é nem pela calma que me vem
De amar, nem pela glória do perigo
Que me vem amar, que te amo; digo
Antes que por te amar não sou ninguém.
Amo-te pelo que és, pequena e doce
Pela infinita inércia que me trouxe
A culpa é de te amar - soubesse eu ver
Através da tua carne defendida
Que sou triste demais para esta vida
E que és pura demais para sofrer. 


Soneto do maior amor
 
 
Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando se sente alegre, fica triste
E se vê descontente, dá risada.
E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal-aventurada.
 
Louco amor  meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo
Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo. 


Soneto de véspera
 
 
Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?
Que beijo teu de lágrimas terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer porque chorei?
Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que distância criou - fria da vida
Imagem tua que compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida... 


O Filho do Homem
 
 
O mundo parou
A estrela morreu
No fundo da treva
O infante nasceu.
Nasceu num estábulo
Pequeno e singelo
Com boi e charrua
Com foice e martelo.
Ao lado do infante
O homem e a mulher
Uma tal Maria
Um José qualquer.
A noite o fez negro
Fogo o avermelhou
A aurora nascente
Todo o amarelou.
O dia o fez branco
Branco como a luz
À falta de um nome
Chamou-se Jesus.
Jesus pequenino
Filho natural.
Ergue-te menino
É triste o Natal.
(Natal de 1947) 


Soneto do amor como um rio
 
 
Este infinito amor de um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo
Eu já não cria que existisse mais.
Este amor que surgiu insuspeito
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.
Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermo
E que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo.
(Montevidéu - 1959)  


O verbo no infinito
 
 
Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar
Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.
E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito
E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...
(Rio de Janeiro - 1960) 


Dialética
 
 
É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
(Montevidéu - 1960) 


Minha Namorada
 
 
Se você quer ser minha namorada
Ah, que linda namorada
Você poderia ser, se quiser ser
Somente minha, exatamente essa coisinha
Essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ser...
Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento:
Ser só minha até morrer...
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber por quê....
E se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha, amada, mais amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho
Seja triste para você...
Os seus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem que ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois. 


Samba em prelúdio  
 
Eu sem você não tenho porquê
Porque sem você não sei nem chorar
Sou chama sem luz
Jardim sem luar
Luar sem amor
Amor sem si dar.
Eu sem você sou só desamor
Um barco sem mar
Um campo sem flor
Tristeza que vai
Tristeza que vem
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.
Ai, que saudade
Que vontade de ver renascer nossa vida
Volta, querida
Os teus braços precisam dos meus
Meus abraços precisam dos teus.
Estou tão sozinho
Tenho os olhos cansados de olhar para o além
Vem ver a vida sem você meu amor,
eu não sou ninguém. 


Orfeu da Conceição
Corifeu  
 
São demais os perigos desta vida para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente e se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita de
música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua. 


Para viver um grande amor
 
 
Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... - não tem nenhum valor.
Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro - seja lá como for.
Há que fazer de corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada epostar-se de fora com uma espada - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor.
É preciso muitíssimo cuidado com  quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está,  está sempre preparado para chatear o grande amor.
Para viver um grande amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não   existe amor sem fieldade - para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vaidade é desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.
Para viver um grande amor, il faut, além de ser fiel, ser bem conhecedor  de arte culinária e de judô - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito - peito de remador.
É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.
É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista - muito mais, muito mais  que na modista! - para aprazer ao grande amor.
Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...
Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos,  estrogonofes, comidinhas para depois do amor.
E o que há de melhor que ir pra cozinha e  preparar com amoruma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?
Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto - para não morrer de dor.
É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente - e esfria um pouco o amor.
Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem  covardia; saber ganhar dinheiro com poesia - para viver um grande amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que  que não quer nada com o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva obscura e desvairada não se souber achar a bem-amada para viver um grande amor. 


O dia da criação
I
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em onda, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo o mal.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.
Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares
estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mão entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discórdia
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis.
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há uma sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perceptiva do domingo
Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
o Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas. e depois da fecundação da terra
E depois da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade o homem não era necessário.
Nem tu mulher, ser vegetal dona do abismo, que queres como as plantas,
imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórcide supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descanse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na terra.
Não viveríamos na degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia.
Não sofreríamos mal de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Seria a indizível beleza e harmonia das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.
  

 Receita de Mulher
 
 
 
As muito feias que me perdoem mas beleza é fundamental.
É preciso que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture em tudo isso (ou então que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso que tudo isso seja belo.
É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche no olhar dos homens.
É preciso, é absolutamente preciso que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços alguma coisa além da carne: que se os toque como ao âmbar de uma tarde.
Ah, deixai-e dizer-vos que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro, seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem com olhos e nádegas.
Nádegas é importantíssimo. Olhos, então nem se fala, que olhem com certa maldade inocente.
Uma boca fresca (nunca úmida!) e também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas no enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras é como um rio sem pontes.
Indispensável que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida a mulher se alteie em cálice, e que seus seios sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca e possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas e que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos de forma que a cabeça dê por vezes a impressão de nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre flores sem mistério.
Pés e mãos devem conter elementos góticos discretos.
A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face, mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior a 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras do 1° grau.
Os olhos, que sejam de preferência grandes e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão que é preciso ultrapassar.
Que a mulher seja em princípio alta ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos ao abri-los ela não mais estará presente com seu sorriso e suas tramas.
Que ela surja, não venha; parta, não vá e que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber o fel da dúvida.
Oh, sobretudo que ele não perca nunca, não importa em que mundo não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade de pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre o impossível perfume; e destile sempre o embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina do efêmero; e em sua incalculável imperfeição constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável. 


Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrêla a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sôbre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem;
da morte apenas
Nascemos, imensamente.

 
Vinícius de Moraes
(1913-1980)

Vinícius de Moraes, poeta, diplomata e compositor brasileiro, autor de centenas de sambas e bossas novas.
Nasceu em 19 de outubro de 1913 no Rio e morreu em 8 de julho de 1980. Também escritor e cantor, publicou seu primeiro livro de poemas, Caminho para a distância, em 1933. Após uma primeira fase mística, passou a outra mais singela e carnal. Apesar das preocupações sociais (como em Operário em construção), foi fundamentalmente o poeta do amor ("...Que não seja imortal, posto que é chama,/ mas que seja infinito enquanto dure"). Em 1956, encontrou-se com Tom Jobim, com quem compôs sua mais celebre canção, Garota de Ipanema, e muitos outros sucessos. Também trabalhou com Carlos Lyra, Francis Hime, Edu Lobo, Chico Buarque, Pixinguinha, Ari Barroso, Adoniran Barbosa, Baden Powell e Toquinho. Com Baden Powell, compôs os afro-sambas, inspirados na tradição cultural e musical da Bahia. Popular graças à música, Vinícius, entretanto, preferia ser reconhecido como poeta.